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| Democracia e
Liberalismo: teoria vs realidade |
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| Introdução |
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Vivemos em uma época em que os padrões
sofrem um processo de universalização e ao mesmo tempo se diferem tanto que nos permite
uma infinidade de interpretações desta nova realidade; essa universalização está mais
a nível metodológico enquanto que seu efetivo uso está mais ligado às características
peculiares de cada caso. Ao se apontar que esta ou aquela interpretação é certa ou
mesmo incorreta, é, por vezes, recorrer em uma falta de alteridade quando não a falta de
uma visão ampla o bastante que possibilite um real entendimento da situação. Pode-se
discutir um determinado objeto sob os mais variados e existentes pontos-de-vista, e tal
discussão pode ser enormemente frutífera, contudo deve-se atentar que a base de
sustentação desta troca de informações tem que repousar em padrões de entendimento se
não iguais, ao menos semelhantes.
O próprio processo globalizador é um bom exemplo disso; muitas vezes
pode-se ver o travar de ferozes lutas intelectuais sobre o que a globalização nos
proporciona, e, não raro, tais discussões prendem-se em pontos que não vêm ao caso no
contexto apresentado. Uns apontam os benefícios econômicos que os indivíduos tem quando
seus respectivos Estados ingressam neste processo, o que ocorre através do liberalismo
comercial; outros apontam que tal processo está, num primeiro momento, oprimindo as
manifestações culturais que, em um momento posterior, tentarão romper as barreiras da
homogeneização encontrando, por vezes, o caminho da xenofobia para realizar tal faceta.
Ambos os pontos-de-vista estão se propondo a discutir o mesmo assunto - globalização,
ou processo globalizador - contudo devido às diferenças entre padrões e mesmo
parâmetros, tais discussões tornam-se impraticáveis. A diferença básica, neste
especial caso, repousa na diferenciação entre o global e o universal, sendo este uma
conceitualização muito mais ligada à filosofia do que propriamente às ciências
sociais, economia e áreas afins.
Minha discussão se prenderá ao global, procurando-se uma grande
aproximação com a realidade vivida pelos mais diversos atores envolvidos.
Duas são as características-pilares que sustentam esse mais recente
processo globalizador - ou desta nova fase de um processo que se iniciou com as Cruzadas:
a democracia e o liberalismo entendidos como valores universais, ainda que este último
disperte uma maior potencialidade de posição contrária devido à suas repercussões
mais diretas e imediatas. Independentemente da posição que se toma, o que se pode
perceber atualmente é que esses dois pilares estão sendo entendidos como fins e não
como meios, ou seja, como objetivos a serem alcançados enquanto si e não como um dos
diversos caminhos possíveis para se alcançar os supostos fins-últimos dos
Estados-nação, que é o bem estar de seu povo.
Neste contexto, o maquiavelismo é mais do que nunca utilizado já que
para se alcançar tais fins (que em verdade, como já foi dito, nada mais são do que
meios) usa-se de todos os artifícios disponíveis, desde uma perda quase que completa da
soberania até um massacre legitimado das instituições sócio-econômicas de
determinados Estados.
Desta forma, gostaria de esclarecer que as opiniões aqui expressas,
tratam do movimento democrático e do liberalismo entendidos como meios e não fins em si
mesmos. Tal alerta se faz necessário para que não recorra-se ao equívoco já apontado
que é o de se discutir algo baseando-se em diferentes padrões.
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| A democracia |
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Entendo que para se discutir democracia,
se faz necessário, antes de mais nada, livrar-se da pesada carga ideológica que está
atualmente inerente à tal processo político; quando se formula uma crítica ao modelo
democrático, está-se criticando um modelo político sobretudo, assim como se pode
criticar o autoritarismo ou totalitarismo. A democracia enquanto tal não possui
significado próprio senão em face da objetivação de determinadas aspirações dos
povos; se entendida enquanto fim, leva-nos a uma praticamente total perda de suas
qualidades fazendo com que seus pontos falhos não só venham à tona como também se
aprofundem.
A democracia e o processo democrático estão sofrendo uma grande crise
nestes últimos minutos do século XX, principalmente quando se atenta para o dito mundo
"em desenvolvimento" (termo que julgo impreciso mas que, porém, expressa o
conjunto de Estados a que quero me referir) - se é que pode-se afirmar com segurança que
tal modelo é efetivamente existente em tal conjunto de países. Não só teóricos como
também o próprio povo, por vezes, está se questionando a respeito da real otimização
de tal modelo político já que nem sempre ele está atendendo à um mínimo dos anseios
populares, isso quando não os aumenta.
Em seu estudo "A Democracia na América", Tocqueville
aponta que a sustentação do processo democrático só foi possível porque era
compartilhado por grande parte da população, a qual acreditava que tal modelo político
era a maneira encontrada para objetivar seus anseios. Seguindo esse pensamento, uma
identificação da população para com a democracia se faz necessária para a
credibilidade e mesmo para a manutenção do modelo.
Enfocando-se o caso brasileiro, percebemos um cada vez maior
distanciamento por parte de elite política escolhida ou em potencial de ser escolhida
para com a sociedade civil em geral. Os únicos momentos de aproximação - ou mais
significativos - entre esses dois grupos políticos (eleitores e elegíveis) se dá
periodicamente no momento da prática do sufrágio universal obrigatório e,
eventualmente, em momentos que intercediam a prática do voto quando os eleitos realizam
algo que, a priori está sendo realizado em prol do povo (o que nem sempre é
verdadeiro), para que isso seja usado na próxima eleição como forma de se atrair a
atenção dos eleitores para determinados políticos.
O governo do povo e para o povo (origem da democracia) já perdeu quase
que por completo toda a sua essência e está se transformando em uma arena na qual
determinado grupo de indivíduos pode tentar alcançar a efetivação de aspirações
particulares, fundando-se na legitimidade oferecida pelo voto.
Da Grécia Antiga para a atualidade já conseguimos progredir bastante
em matéria de democracia, sobretudo no que condiz à ampliação dos que podem usufruir
do direito de voto, atingindo o sufrágio universal. Se por um lado alcançamos essa
importante vitória, por outro perdemos pois o governo não mais está se fundando no povo
e para o povo. Na realidade, o povo durante um longo período de tempo somente atuou na
legitimação das políticas, ainda que se faça necessário destacar que sempre houveram
focos de recusa à esse status quo, porém que somente em algumas poucas vezes
consegui vitórias significativas. Com o passar do tempo, essa pacifícidade política
encorajou a elite política e outras elites que assumem o poder indiretamente a atuar de
uma forma cada vez mais egoísta e mesquinha, deturpando ainda mais a democracia - mesmo
que se esteja pensando a democracia no sentido moderno do termo.
Diante disto, o povo se viu cada vez mais flagelado além de renegado
à segundo plano, o que fez com que seu descontentamento por tal condição fosse
aumentando. Encheu-se, assim, um barril de pólvora cujo fogo se encontra não muito
distante; sendo que alguns barris até já explodiram.
Essa classe política elegível não só está perdendo a confiança do
povo, como também está havendo um cada vez maior afastamento da arena política por
parte desse mesmo povo.
A atual inquestionabilidade por parte desses políticos do sufrágio
universal obrigatório nos indica o temor que eles têm de perder além dos
eleitores, essa ampla legitimação das medidas tomadas em nome de tal povo.
Como a não muito tempo no disse Napoleão Bonaparte, "quem não
dá alguma importância à opinião pública mostra que os sufrágios não foram
merecidos" (BONAPARTE, N.. Aforismos, máximas e pensamentos. Clássicos
Econômicos Newton. São Paulo. 1997.pág. 59); e, após todo esse tempo de apatia
política, o povo começa a valer-se dessa idéia - não que tenha se inspirado nela, mas
sim de que sua essência começa a rondar tal povo. Já que a descrença para com a
política atinge toda a classe política elegível, o descontentamento para com a
democracia vem aumentando, o que causa o crescimento quantitativo daqueles que passam a
simpatizar ou a não apresentar a recusa de outrora aos modelos mais autoritários de
governo.
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| O Liberalismo |
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O outro sustentáculo do processo
globalizador - o liberalismo, também está sendo entendido como um fim em si mesmo. O
mundo todo está adotando uma série de medidas sob a égide do liberalismo; medidas de
abertura comercial, estabilização econômica, política de juros elevados... diz-se que
é um processo inevitável e que caso haja uma recusa a ele, o Estado sofrerá
"punições" do sistema internacional que só prejudicarão ainda mais as
condições atuais. Talvez isso seja verdadeiro, não me coloco aqui contra o liberalismo
econômico, ele realmente pode propiciar enorme ganhos aos Estados; contudo, deve-se
atentar para o fato de tal política econômica ser o meio para se atingir tais
benefícios, e não como o objetivo último.
No caso brasileiro, a liberalização do comércio está se legitimando
na promessa de que num futuro não muito distante a população poderá desfrutar dos
benefícios do comércio internacional. Todavia o que se percebe atualmente é o colapso
de uma série de indústrias de médio porte (cujos trabalhadores agora desempregados, por
vezes, irão criar pequenas e micro empresas, que sem um apoio real e consciente por parte
do Estado e suas instituições, correm sério risco a também desaparecerem) de alguns
setores da economia, e nem sempre está sendo possível um realocamento dessa massa de
trabalhadores, de cidadãos que diante dessa esperada melhora na condição de vida, agora
perdem seus empregos. Os mesmos políticos nos quais esses trabalhadores acreditaram e
legitimaram buscando ajuda na solução de problemas, agora trabalham para interesses
maiores que acabam por prejudica-los ainda mais. Ao menos no curto prazo, os maiores e,
talvez únicos, beneficiados com tais aberturas comerciais são os já detentores do poder
econômico, o que contribui para concentrar ainda mais a renda. De que nos adianta manter
uma taxa anual de exportação em torno de 32 bilhões de dólares (Fonte: LAFER, C..
"Política Externa Brasileira: Reflexão e Ação". In MARCOVITCH,
J.(org.) . Cooperação Internacional: Estratégia e Gestão. Edusp. 1994. São
Paulo. Brasil) se o povo em geral não se vê beneficiado, ou mesmo se os escassos
benefícios que surgem não são suficientes para abafar os prejuízos da sociedade civil?
Se por um lado esse liberalismo me permite comprar uma televisão
significativamente mais barata do que há um ano atrás, por outro ceifa trabalhadores de
comprarem essa mesma televisão, os mesmos trabalhadores que há um ano podiam comprar
idêntico aparelho, ainda que mais caro.
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| Apontamentos finais |
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Pode-se chegar, com isso, a duas
conclusões primeiras: a de que os sustentáculos do processo globalizador não são tão
favoráveis à todos ou mesmo à totalidade como se vem apresentando, e/ou que nem todos
os cidadãos brasileiros são entendidos como tal já que a função do Estado é
objetivar o maior número possível de interesses, sejam eles de que classe social forem.
Não sou propriamente contra o liberalismo , nem mesmo contra a
democracia, o que estou ponderando é o fato que do modo como estão se utilizando desses
dois modelos econômico e político respectivamente, uma grande crise pode surgir. Os dois
modelos podem estar se auto-impludindo (Isso não por culpa do modelo em si mas sim da
maneira como eles estão sendo manejados).
Se faz necessário um repensar desses modelos quanto à sua aplicação
uma vez que eles devem, ao menos em princípio, servir ao povo já que estão sendo
adotados pelos Estados que existem em prol de sua população. Tal repensar compete não
só aos políticos e classes dirigentes como também à sociedade civil já que a uma
sociedade compete exigir direitos mas também cumprir deveres. Somente uma real tomada de
consciência por ambos os grupos é que permitirá um maior entendimento da sociedade
brasileira como um todo, esclarecendo suas necessidades e anseios. Caso se continue a
sustentar essa privilegiação de determinados grupos sociais - que abarca não só o
relacionamento entre as classes "A" e "D" da região metropolitana de
São Paulo como também a relação entre as diversas necessidades do Sudeste ao Sertão
Nordestino - a sociedade poderá entrar em uma crise tão séria e profunda que o
resultado é aparentemente imprevisível.
"Para os que têm um compromisso político com o processo de
consolidação democrática, fica a sugestão de que a chave da preservação democrática
passa antes pela reforma das instituições e do sistema político, de modo a que estes
setores que hoje não se sentem representados no processo político e nem confiantes nos
canais tradicionais de participação passem a avaliar a democracia e seus procedimentos
como algo que realmente vale a pena preservar" (KAHN, T.. "Apatia política e
Credo Democrático". Lua Nova no 39 - Governos & Direitos.
São Paulo. Brasil. 1997.).
Portanto, entenda-se a globalização como for, é importante que se
fomente uma maior participação entre as mais diversas classes formadoras dos Estados
para que este possa se desenvolver como um todo, pensando em sua totalidade e,
principalmente, em sua realidade; não fundamentando-se somente nos números oficiais (ou
não) que englobam o país como um todo e que pode vir a gerar enormes distorções da
realidade vivida por seus cidadãos. Um caminho para essa maior participação é o da
cooperação, seja ela entendida em nível local, regional ou mesmo nacional; cooperação
essa que deve ser real, com a criação e/ou manutenção de foros de discussão já
existentes, porém foros que possam deliberar sobre a vida política-social e não que
somente sirvam de exercício intelectual. A realidade não nos chama, invoca.
"Duas mil vidas e vinte mil ducados não bastarão a
decidir a quem pertence esta bagatela. É o que acontece quando há excesso de paz e
riqueza: a gangrena rebenta por dentro, e do lado de fora não se vê porque o homem está
morrendo" (Hamlet - Shakespeare)
Rodrigo
Cintra
São Paulo, 14 de abril de 1997. |
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