O fim da Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra
Fria marcam o começo de uma grande rivalidade entre dois modelos político-econômicos
diferentes, o capitalismo e o comunismo. No primeiro caso, houve o predomínio do modelo
político da democracia (mesmo que em um nível não mais do que teórico) enquanto que no
segundo predominou o autoritarismo.
Essa rivalidade entre diferentes modelos foi incorporada principalmente
por duas grandes potências na época - EUA e URSS, respectivamente - e por seus aliados
temporários. Tal incorporação ocorreu tão arraigada em seus representantes que passou
a se confundir com eles, o que apenas dificulta o entendimento da real situação já que
quando se pensa em comunismo se pensa em União Soviética e vice-versa (ocorrendo o mesmo
com o capitalismo, ainda que de uma forma menos extremada).
Com o transcorrer da Guerra Fria, e justamente por ser uma guerra, os
dois lado opostos lutavam para conseguir o maior número possível de parceiros e, uma vez
conseguido o apoio, pela manutenção desse apoio. Nesse sentido o mundo se dividiu,
basicamente, em três grupos de países: Bloco Capitalista, Bloco Comunista e Neutros. O
grupo que mais oferecia instabilidade ao sistema, aumentando as tensões é o grupo dos
países neutros; já que a Guerra Fria era caracterizada pelo confronto das duas
potências contudo nunca de uma forma direta, os países neutros eram os problemáticos
já que um tomada de partido por parte deles poderia causar um aumento da força de
determinado Bloco que poderia ser insustentável para o outro. Desta forma, a
preocupação para com tais países foi muito significativa; procurava-se senão
atraí-los para o Bloco, ao menos mantê-los em uma posições de neutralidade.
O modo encontrado pelo Bloco Comunista para realizar a expansão de
suas idéias foi - como já o foi dito - o autoritarismo, o centralismo das idéias e
decisões em um único centro; uma parte significativa das disponibilidades econômicas da
então União Soviética era usado para o policiamento interno, ou seja, para que as
idéias não diferissem em demasiado do que era desejado. Outra parte desse dinheiro era
gasto com a manutenção do modelo comunista em outros locais que não a própria URSS,
sendo que Cuba é o caso de maior destaque pois estava dentro da área de influencia
norte-americana (encontrando-se a não mais do que 90 milhas deste); esse é, talvez em
parte, em dos principais sustentáculos do modelo comunista em Cuba já que a autonomia
cubana, sem o então apoio da URSS não era suficiente para mante-la numa posição como
essa.
O caminho encontrado pelos Estados Unidos foi um pouco diferente pois propagava
uma atuação menos autoritária; a influência que se procurava ter sobre os demais
países era muito mais ideológica (porém quando tal método não funcionava as baionetas
eram rapidamente requisitadas). Num primeiro momento, quando o perigo do "avanço
comunista" era muito forte, a solução para se deter o avanço foi a base de força
física, militar; tal fato pode ser facilmente percebido pelo enorme e fundamental apoio -
senão estímulo - para o estourar dos golpes militares ocorridos na América Latina. O
motivo principal da destituição dos governos civis, substituídos pelos militares era o
da contenção dos "subvertores", daqueles que se contrapunham aos nosso maiores
bens, que eram a família, a propriedade e a liberdade de sermos felizes.
O desenvolver da Guerra Fria, causou a sua própria banalização uma
vez que com o enorme aumento do poderio de destruição, de ambas as partes, a guerra
direta se colocava cada vez mais distante pois caso ocorresse, o sentido da guerra -
vitória (não necessáriamente total) de uma das partes - não mais poderia ser
alcançado, a guerra direta significaria a total destruição de ambas as partes. De que
serve entrar em uma guerra (a não ser que já se tenha o conhecimento de antemão de que
com ou sem ela sua destruição se efetivará) se sabe-se que vai perder, mesmo que o
outro lado também venha a perder?
Os gastos para a manutenção dos programas militares estava se
tornando impraticável para ambas as pares, o que pedia uma nova forma de atuação menos
onerosa e que repercutisse em melhores resultados. A solução encontrada pelo bloco
capitalista era a da propagação de um "valor universal" que era a liberdade, e
esta somente poderia ser atingida através do modelo democrático. Neste momento entra em
cena o segundo período da Guerra Fria, contrapondo-se à luta militar surgia a luta
democrato-ideológica. A democracia passa a ser defendida e a mão que ontem segurou a
mão dos militares, hoje os derruba. A democracia se espalha no mundo, e não muito tempo
depois o bloco comunista não resiste à essa nova forma de luta (evidentemente não só
por este motivo) e o Muro que até então dividia esses dois vizinhos inimigos não só
mostra as rachaduras como também pouco tempo depois desmorona. A uma primeira vista os
defensores do capitalismo e da democracia cantam vitória, o inimigo mau é destruído e
finalmente a liberdade poderá reinar permitindo a todos a busca pela felicidade.
Nesses anos que se seguiram ao famoso 1989, muitas coisas mudaram,
inclusive as ligadas às classes mais pobres da sociedade, não só para aqueles que andam
em ônibus e passam por baixo de pontes nas quais esgotos e pessoas se misturam, mas
também para aqueles que possuem seus carros e ao parar num sinal são obrigados a
assistirem trapos humanos batendo em suas janelas a procura de alguma moeda. Se, de fato a
democracia diz respeito ao acesso de algo a todos, creio que esse "algo" é, ao
menos no momento, a violência. Parece estar se clareando a cada dia que essa tal de
democracia não é bem o que diziam ser, mas o que é então?
Para se responder a esta questão é necessário, antes de mais nada,
se livrar da enorme carga ideológica que é inerente a tal processo político. Estou
pensando democracia sobretudo nos países do Terceiro Mundo (expressão que vem do
período da Guerra Fria, que hoje possui um sentido senão mais do que completamente
deturpado, mas que apresenta mais claramente o conjunto de países a que refiro).
O governo democrático, justamente por estar baseado no consentimento
dos governados, caso queira se sobrepor a tais indivíduos preciosa controlar a opinião
pública; nesse sentido a educação de massa e os meios de comunicação de massa são
fundamentais à manutenção do sistema. A democracia será menos ameaçadora se as
opções políticas estiverem fechadas. O programa neoliberal geral de "minimizar o
estado" tem o mesmo objetivo. Ao que está parecendo a democracia não é em si
um valor todavia uma forma de dominação mascarada contraditoriamente pela liberdade.
A democracia, neste sentido, está sendo utilizada como uma forma de
dominação e manutenção do status quo. De um mesmo status quo que em
tempos passados foi mantido através dos canhões e das palavras, e que hoje parece ser
mantido, até o momento, através das palavras. Tocqueville estava certo quando apontou
para o fato de que o processo democrático só pode se manter se compartilhado por grande
parte da população, e esta somente acreditará no sistema se este responder a seus
anseios, o que ele se esqueceu foi de procurar entender quais são esses anseios; ou
melhor, de como eles são construídos. Schumpeter trata esta questão nos apontando que,
assim como os empresários o fazem, os políticos criam nossas necessidades e anseios para
depois satisfazê-los. A democracia é em grande sentido a liberdade, entretanto ela é a
liberdade-imposta; somente somos livres no sentido de liberdade que nos oferecem.
Mas se a democracia é uma forma de dominação, para que ela domina? A
Guerra Fria realmente terminou e com ela o perigo eminente do comunismo também, de forma
que não há a priori um inimigo na qual ela possa justificar sua existência e
atuação, ela deve se justificar por si mesma; isso não está sendo uma tarefa fácil,
percebe-se um cada vez maior descontentamento para com o processo democrático, no qual as
primeiras rachaduras começam a aparecer. Um oponente precisa ser rapidamente encontrado
afim de que se consiga sustentar tal processo, não por acaso o Islamismo ganha cada vez
mais destaque no meio intelectual como o substituto do comunismo...
Rodrigo
Cintra
São Paulo, 04 de junho de 1996